
Formado em administração de empresas, mestre em Comunicação Digital e com duas especializações na Schumacher College, na Inglaterra, Tomás de Lara é conselheiro do Sistema B Brasil e do Cebds (Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável). Nessa entrevista ao Blog Negócio Sustentável, ele revela alguns conceitos econômicos que estão por de trás do movimento B, fala da sinergia do movimento com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas e dos desafios de aumentar uma corrente de sustentabilidade em um país mergulhado em uma das piores crises econômicas.
BLOG NEGÓCIO SUSTENTÁVEL: Como pactuar o desenvolvimento econômico com as necessidades de preservação do planeta?
Tomás de Lara: As grandes organizações que nasceram depois da Segunda Guerra Mundial, como o FMI, o Banco Mundial e a própria ONU, surgiram sob uma ótica de desenvolvimento que estabeleceu planos de apoio aos países subdesenvolvidos e que tinham muito a ver com um liberalismo muito grande do sistema financeiro. Estamos assistindo ao ápice do liberalismo. Os acordos entre o FMI e o Banco Mundial para aportar dinheiro para esses países, inclusive para o Brasil, exigiam contrapartidas que incluíam regulações financeiras da maneira que esses órgãos queriam. Isso permitiu que poucas pessoas tivessem acesso a muito dinheiro, gerando concentração de renda, poder e informação e uma desigualdade no mundo inteiro. Para atingir um outro nível de maturidade em relação ao desenvolvimento econômico, precisamos entender quais são os outros indicadores da macroeconomia. Tanto o PIB quanto o PIB per capita ainda são os indicadores que os países mais usam, mas também é preciso colocar indicadores ligados ao bem-estar, como o bem-estar da natureza, da sociedade, das pessoas, de como afeta sua saúde mental, da conexão com a sua comunidade e da conexão com a terra. Indicadores específicos macroeconômicos não atendem isso. Um alto PIB não se traduz necessariamente em felicidade da população. A OXFAM, que é a organização internacional mais importante do estudo de desigualdade no mundo, nos ajuda a entender isso com um slide que chamam de “O herói do PIB”. Ele mostra uma pessoa que se acidentou no trânsito quando estava a caminho de um hospital para fazer seu tratamento de câncer. Também sob um processo judicial muito caro de separação, o personagem entrava em um drive-thru para comer um hambúrguer quando se acidentou. Tudo isso que foi relatado gera PIB: acidente de carro é PIB, a pessoa que tem câncer gera PIB, a pessoa que está num divórcio caro com litígio também gera PIB. Aí o país tem um PIB enorme, mas isso quer dizer que essa pessoa está bem? Não. Ela está muito mal. De novo, PIB é um indicador ruim porque ele pode tendenciar uma economia que desagrega e que se desconecta da sociedade, da natureza, do bem-estar e da felicidade.
BLOG: O crescimento do número de pessoas com algum tipo de comprometimento de saúde mental, como depressão, burn-out e síndromes diversas, pode ser um sintoma do esgotamento do modelo?
Tomás: Depressão e ansiedade são as maiores causas de afastamento do trabalho por motivo de saúde. Tratam-se de indicadores sutis e subjetivos que revelam que, por mais que a economia cresça, outros fatores mostram como as pessoas e a economia estão indo mal. A gente tem cada vez mais esses problemas de saúde, é sistêmico. Cada vez mais o mundo te cobra produção. Cada vez mais as pessoas competem porque os mercados vão ficando mais complexos, e isso tem a ver com o mercado financeiro, que é o centro do sistema. Afinal, o que o mercado financeiro faz? Ele premia aquela empresa que consegue fazer o compliance, o que está na regra, e consegue retornar valor da forma mais rápida e mais segura, sem incluir o desenvolvimento socioeconômico e ambiental, que é o que as empresas B tentam fazer de uma forma bem técnica. Isso é um problema de design do sistema financeiro e do capitalismo por si próprio. O capitalismo nos trouxe coisas incríveis, evolução tecnológica, evolução da qualidade de vida, aumento da expectativa de vida em todos os países, mas chegou em um nível de maturidade em que ele não traz mais benefícios. Ao contrário, há um aumento das tensões sociais, pois, graças à informação, as pessoas se deram conta de tudo o que está acontecendo. A gente consegue ver que há outros sistemas possíveis e fica mais evidente essa desigualdade e a concentração de poder.
BLOG: Está dizendo que o capitalismo se esgotou?
Tomás: Do jeito em que ele está, com certeza se esgotou. Não é à toa que estamos vendo surtos de protestos sociais em vários países, inclusive em Hong Kong, Chile, Equador e tantos outros lugares. Isso já está bem evidente. Um modelo que não consegue contabilizar a evolução do meio ambiente é falho. Hoje é bem claro que não temos os recursos suficientes para atender a esse sistema. Tanto ambientalmente quanto socialmente, está cada vez mais claro. O nível de concentração de renda tem aumentado, a desigualdade tem aumentado. Muitas pessoas têm saído da linha abaixo de extrema pobreza, é verdade, mas, ao mesmo tempo, lá em cima as pessoas têm concentrado capital de forma cada vez mais forte. O sistema como está hoje em dia não se sustenta mais, está falido.
É difícil ser futurista, mas o mais importante é a evolução do próprio conceito de capitalismo, que é isso, Capital + Ismo. É como se o Deus direcionador, a força que governa e a mais relevante fosse o capital financeiro. E isso é um problema. Não é o capital financeiro. Você pode pegar e encher de dinheiro a sua mesa e você pode ser infeliz. Porque a maneira como você encheu de dinheiro a sua mesa te fez romper relações sociais, romper relações com a família, te fez adoecer. Você pode se entupir de dinheiro e ter uma doença por causa desse seu processo que nenhum dinheiro do mundo vai curar. Quando se coloca o dinheiro e o capital Ismo como centro de todas as relações, inclusive políticas, você tem a corrupção e tantos outros problemas que estamos vendo. O que é a Economia? É a regra e é a gestão do país. Se essa regra está baseada só no acúmulo financeiro e desenvolvimento do dinheiro, e é isso que o capitalismo faz, vai ter essas falhas, porque as pessoas vão focar no acúmulo do dinheiro e deixar de fora os outros desenvolvimentos que são bem importantes. E já está provado por cientistas e por pesquisadores de Psicologia que, se você passar de um certo limite de dinheiro, ele já não te traz mais felicidade.
BLOG: Qual é esse valor?
Tomás: Tem diversos estudos nesse sentido, e um deles se chama “The Gallup World Poll”, realizado com 1,7 milhão de pessoas, em 164 países. O trabalho chegou à conclusão de que depende da região e do país, mas a média global é uma renda de U$ 95 mil dólares por ano. Essa é a média global que leva a uma avaliação satisfatória. Depois disso, a tendência é virar uma roda sem retorno.
BLOG: Por outro lado, a experiência do socialismo também não deu muito certo em alguns lugares.
Tomás: Já foi comprovado que não funciona essa ideia de tentar centralizar a questão da economia, prever o mercado e a demanda e tentar distribuir quem vai fazer a demanda e a produção. A diferença do capitalismo é que existe essa liberdade de deixar a livre iniciativa. Aí tem a discussão sobre o liberalismo econômico ou não. Nós, do movimento B, assim como muitos movimentos que trazem uma nova visão econômica, acreditamos na liberdade de empreendimento e na livre iniciativa. Mas defendemos que tem que ser uma liberdade econômica dentro de uma consciência socioambiental, de limites planetários. Uma ótima referência é o livro da economista Kate Raworth, Economia Donut: Uma alternativa ao crescimento a qualquer custo. Esse livro tem um diagrama muito bacana que ela pega do Instituto de Resiliência de Estocolmo, um dos estudos mais importantes dos limites planetários. Ela traz esses limites para o gráfico e faz uma base fundamental, e social, que fala o quê uma sociedade tem que ter no mínimo para ser feliz. A autora cita nove limites ambientais e planetários, como a integridade da biosfera e os fluxos geoquímicos da terra, ou seja, indicadores ambientais. Ela ainda traça uma base social, que, para uma sociedade ter um mínimo de bem-estar, precisa englobar os seguintes itens: água limpa, alimentos saudáveis e limpos, saúde, igualdade de gênero, igualdade social, energia limpa, trabalhos dignos, voz política, resiliência, educação e remuneração mínima. São pré-requisitos para a humanidade sobreviver, florescer e trazer seu potencial humano. É uma coisa que muitos economistas não conseguem entender ainda.
Veja que interessante: não é à toa que cada vez mais estamos escutando, estudando e entendendo os povos originários, os indígenas, os aborígenes, pessoas que nunca se desconectaram da natureza e nunca entraram totalmente no sistema econômico. Eles têm muitos aprendizados sobre o fluxo da natureza, os processos e os ciclos naturais dos diferentes seres vivos do micro e macro-organismo. Temos tentado retomar a conexão com tudo isso e integrar. É um resgate do conhecimento ancestral. Na Schumacher College a gente aprende o conceito do biorregionalismo. Em resumo, o biorregionalismo é entender quais são os traços e os possíveis caminhos já existentes em uma região para compreender como a vida pode florescer da melhor forma possível naquele local. Quando uma empresa planeja extrair ou produzir algo em determinada região, precisa procurar entender tudo sobre a biorregião: como ela funciona, como fazer o resgate ancestral das pessoas que vivem lá há muito tempo, o que esse local produz, e como funcionam as relações de troca de energia entre todos os sistemas vivos de lá. Caso isso não aconteça, essa empresa estará propícia a fazer uma livre iniciativa não-consciente e não vai trabalhar a favor da vida. Quando se fala a favor da vida, é da vida como um todo, a vida que floresce. Quando a gente fala de produção de qualquer coisa, de um copo plástico, de bebida, de energia elétrica, entre outros, é preciso se perguntar: de onde vem isso? Vem da vida. O copo plástico vem de onde? Vem do polímero. O polímero vem de onde? Vem do petróleo. O petróleo vem de onde? Vem de uma árvore, que um dia foi uma vida. E como ela se calcificou? A partir de um processo geológico que foi para o fundo e depois voltou. Isso tudo faz parte da vida. Esse entendimento sistêmico é o que o movimento B defende. Os fundadores se inspiraram no livro Small is Beautiful, livro fundamentador da Schumacher College. E inclusive na declaração da interdependência, diz que a gente deve ser responsável por criar uma economia e fazer negócios como se as pessoas e a natureza importassem. Essa declaração de interdependência que toda empresa B assina nos traz esse resgate no qual importa, sim, o bem-estar das pessoas e da natureza, importa, sim, essa questão de entender os interesses de curto e longo prazo de pessoas. Não é à toa que, além da declaração de interdependência, toda empresa B tem que adicionar a cláusula B em seu contrato-social. A empresa B é um novo DNA de empresa, e esse DNA, como na genética, é o que passa a informação de organismo para organismo, e é a estrutura que forma.
BLOG: O que contém nessa cláusula B?
Tomás: Ela varia de país para país, mas basicamente fala que os gestores das empresas devem atender em curto e em longo prazo os interesses de sócios e acionistas, dos funcionários, dos fornecedores, do meio ambiente local e global, e da sociedade local e global. Adiciona no contrato social, um acordo que a empresa faz com a sociedade. É um acordo de vinculação legal, ele faz parte do direito administrativo. O contrato social é regido e verificado pelo estado, no caso pode ser o município ou a junta comercial. Depende de cada legislação, mas é a empresa declarando para o estado o seguinte: “eu vou operar dessa maneira”. E quando inclui essas cláusulas, afirmando que vai atender aos interesses de curto e longo prazo de todos os stakeholders, é que a empresa amplia sua responsabilidade socioambiental mediante um acordo que é o contrato social, o mais importante instrumento societário de uma empresa. Todas as empresas B têm que ter isso obrigatoriamente.
BLOG: Quando o sistema B chegou ao Brasil?
Tomás: Chegou em 2008 no mundo, em 2012 na América Latina, e em 2013 no Brasil. No dia 23 de outubro de 2013, no Brasil, cinco empresas foram certificadas.
BLOG: Quais os desafios para essa certificação em um país tão desigual e com uma cultura tão forte de privilégios?
Tomás: O movimento B, tanto no Brasil quanto no mundo inteiro, é um movimento ainda de pessoas privilegiadas, ou seja, da elite. Essas pessoas tiveram acesso à educação de qualidade, pública ou privada, e conseguiram fazer uma empresa já com essas informações, mirando para esse modelo sustentável, que traz bem-estar.É fato que é mais difícil empreender com impacto social e ambiental quando você ainda tenta pagar as contas e estabelecer o mínimo do seu negócio. O que não quer dizer que alguém que saia de algum lugar vulnerável, e que tenha menos acesso, não possa fazer isso. Só que, normalmente, as barreiras são maiores devido ao não acesso à informação. Trata-se ainda de um tema pouco debatido, ele não está no mainstream das universidades. É um movimento mais elitista, não por querer ser assim, mas pelo contexto. Essas informações são mais novas, no Brasil se fala sobre isso há seis ou sete anos. O movimento ambientalista começou a ser acessado pelo grande público há pouco tempo, então acaba sendo mais limitado. Não conseguimos ainda furar a grande bolha.
BLOG: Isso significa que a mesma elite que criou a cultura do privilégio e da concentração é que faz este movimento de mudança?
Tomás: Uma parte da elite é totalmente desconectada, privilegia o acúmulo de capital de qualquer maneira. Importante separar isso, pois tem a elite que quer manter o status quo e não questiona os seus privilégios. Mas posso falar da minha experiência prática de ter conversado com centenas de empresários B pelo mundo inteiro, especialmente na América Latina, nos 10 países em que atuamos. Trata-se de um público bastante consciente dos seus privilégios e que busca, a partir deles, ter uma responsabilidade maior. Essas pessoas reconhecem e buscam, a partir do seu empreendimento e livre iniciativa empresarial, criar empresas com o objetivo de solucionar desafios sociais e ambientais, criando uma economia na qual o sucesso é medido pelo bem-estar da sociedade e do meio ambiente. Nenhum humano que tem acesso a algo que lhe confere bem-estar e privilégio vai querer abrir mão dele. Uma coisa é ter privilégio e seguir sem se importar com a sociedade, outra é ter consciência desse privilégio e fazer com que outras pessoas também o tenham. Essa é a mudança. Entender que existe uma responsabilidade nossa, de cada um, como consumidor, como cidadão, como gestor público, como jornalista, como comunicador, como artista. Mudar esse paradigma é criar uma economia para dar privilégio a outras pessoas. Compartilhar esse acesso.
BLOG: O questionário para a certificação B é o mesmo desde o começo ou vem sofrendo alterações?
Tomás: Vem sofrendo alterações e está na versão 6.0. Quando começou, em 2009/2010, tinha a versão 1. E as versões foram evoluindo com os próprios usuários. Hoje, são 80 mil empresas em 63 países que utilizam esse questionário, e todas essas empresas podem dar feedback através desta ferramenta.
BLOG: Mas esses questionários são modulados? Quem tem empresa com três pessoas responde ao mesmo questionário de uma empresa com 3 mil?
Tomás: Ele varia conforme o setor. A segunda coisa é o tamanho, e a terceira é o país, que tem legislações diferentes. Dessa maneira, existem cerca de 60 questionários diferentes que se adaptam. É um questionário adaptativo. Mas tem também a evolução dele. Está na versão 6.0 porque ele é crowdsourcing, ou seja, as pessoas vão dando feedbacks, e esses feedbacks vão chegando ao SAC (Standart Advisory Council), que é um Conselho Internacional de pessoas que são especialistas.
BLOG: Poderia falar um pouco sobre a parceria entre a ONU e o movimento B?
Tomás: Essa parceria se chama SDG Action Manager, uma solução online de gerenciamento de impacto desenvolvida pelo movimento B e pelo Pacto Global das Nações Unidas para ajudar as empresas (qualquer tipo e tamanho) a adotar medidas para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS´s) até 2030. (Esta nova plataforma já está no ar e pode ser acessada gratuitamente no link https://app.bimpactassessment.net/get-started/sdg-action-manager
BLOG: As empresas precisam ser B para participar?
Tomás: Não precisa. É um projeto da ONU para medir como as empresas estão trabalhando a favor do ODSs. Por isso que se chama Action Manager, um gestor da ação empresarial. O Pacto Global dentro da ONU possibilita conhecer o dia a dia das empresas e como suas boas práticas estão contribuindo para as ODSs. Atualmente, o Pacto Global tem 13 mil empresas associadas. Elas assumiram o compromisso de trabalhar em 10 vetores que são ligados aos 3 vieses da ONU. O primeiro é o Tratado Internacional dos Direitos dos Trabalhadores, o segundo é do Direitos Humanos, e o terceiro é o vetor de responsabilidade, transparência e anticorrupção, entre outros.
BLOG: Qual o máximo de pontos que uma empresa B já atingiu?
Tomás: A gente nunca sabe ao certo. O máximo possível é 200. Ninguém chega, a barra é muito alta. O máximo foi 150 e pouquinhos.
BLOG: A partir de 80 já pode ser certificada, certo?
Tomás: Essa é uma pontuação bem difícil. Acima de 100 já está pontuando entre as melhores do mundo, por exemplo. Ninguém é perfeito e o ponto a ser destacado é a empresa usar uma plataforma de gestão do seu impacto socioambiental e de melhora contínua. O trabalho do sistema B é dar evidência a essas boas práticas sociais e ambientais e ter a transparência como um processo contínuo, onde a empresa diz “eu não sou perfeita, mas estou comprometida no caminho de melhoria”. Esse, para mim, é o futuro dos negócios.
BLOG: Quais as vantagens de se tornar uma empresa B?
Tomás: As vantagens começam por ter uma marca comum global – Certified B Corporation – Empresa B Certificada - e essa marca é hoje usada por mais de 3 mil empresas em 63 países. A segunda coisa é fazer parte de um movimento de pessoas e empresas que estão dedicadas a criar uma nova economia. Uma vez que você consegue a certificação B, você entra nesse grupo, que é profundamente colaborativo. Eu vivo isso há 6 anos, e é profundo. Quando você tem o selo B, ele é uma porta de entrada para uma comunidade empresarial comprometida com negócios de impacto positivo. As empresas B com certeza são o grupo e a comunidade empresarial que mais tem as boas práticas socioambientais. Estou falando isso em todo o tipo de tamanho de empresa. Desde uma empresa pequenininha, como a rede Asta, no Rio de Janeiro, que é super inspiradora e trabalha com mulheres vulneráveis, artesãs no Brasil inteiro. Até empresas gigantes, como a Natura, hoje a empresa de cosméticos mais relevante no mercado global sustentável. Não é à toa que comprou a Bodyshop, a Avon e a Aisop, a empresa mais importante de cosméticos na Oceania. Ela quer fazer essa transformação no mundo dos cosméticos, que é muito importante, está ligado ao mundo do bem-estar, da autoestima, da beleza e conectado ao corpo. Eles querem garantir que a indústria do cosmético, que sai da natureza direto e cai no nosso corpo, que é a nossa morada, que seja uma indústria globalmente sustentável. A Natura está liderando globalmente isso. Ser B é fazer parte de uma comunidade global na qual que você consegue ter acesso às empresas que estão liderando a mudança sustentável em diferentes setores.
BLOG: No caso da Natura, o fato de ela estar na lista das empresas B valoriza as ações? A gente consegue ter uma relação de causa e efeito?
Tomás: As ações da Natura estão crescendo muito. Não é à toa que ela tem comprado outras empresas. A compra de outras grandes empresas, como a Avon, demonstra que ela está saudável financeiramente.
BLOG: Como o sistema B vem influenciando a gestão pública, os governos?
Tomás: Quinze países já têm alteração ou algum tipo de conversa avançada com Senado, Congresso e Legisladores. Nos Estados Unidos, 32 estados têm uma lei que se chama Public Benefit Corporation, em que é permitido que as empresas se concentrem nos lucros e benefícios para a sociedade.
BLOG: No Brasil temos alguma coisa?
Tomás: No Brasil tem um anteprojeto que se chama “Empresa de Benefício” que ainda está tramitando. Alguns legisladores estão tentando transformar em projeto de lei. O Estado pode dar preferência de compra de produtos de empresas com reconhecimento legal de uma entidade que opera sobre determinadas práticas, como transparência, ações sociais e ambientais, práticas de governança. É de interesse do estado comprar dessa empresa porque ela está comprometida com impacto social e ambiental. Estamos caminhando para isso.
BLOG: Qual é o peso da inclusão – gênero, raça, deficientes - no questionário B?
Tomás: É um peso importante. Eu diria que é tão importante quanto o peso da desigualdade de remuneração. Tem perguntas como: A sua empresa tem políticas de contratação de pessoas em vulnerabilidade social? Quanto por cento dessas pessoas fazem parte do corpo de funcionários etc. Isso é um peso muito importante.
BLOG: Gênero e Raça também?
Tomás: Gênero e Raça, não. Em alguns países, não são tão determinantes esses fatores. No Chile, raça não é, mas o gênero, sim. Tem uma pergunta que é: quanto por cento de mulheres estão em cargos de direção na sua empresa?
BLOG: Mas no Brasil não seria importante abordar essa questão de raça?
Tomás: Totalmente. É um trabalho em desenvolvimento. O movimento B é um movimento global, o que faz com que sua avaliação também seja. A questão de raça no Brasil é extremamente importante, é central na desigualdade.
BLOG: Como dos imigrantes, por exemplo?
Tomás: Com certeza. No Brasil, esse não é um problema tão grande como na Europa. Essa é uma dificuldade no movimento, que é baseado na comparação. Quando você coloca uma granulação aqui que é de raça, o outro é de imigrante, outro é de etnias originárias, aí começa a desbalancear. Por isso é que o questionário entra pela ótica de pessoas em vulnerabilidade ou com dificuldade de acesso ao mercado, e isso é mais amplo e possibilita a comparação global. Porque o desafio é comparar globalmente empresas em contextos sociais e ambientais diferentes. Imigração é superimportante na Alemanha ou na Noruega; aqui, não. Ao mesmo tempo, temos uma coisa em comum, as pessoas de raça negra, de povos originários, mulheres em alguns casos, todo esse grupo tem dificuldade de ter a mesma remuneração do que homens brancos. Isso é global, por isso que o movimento B adota essa questão.
BLOG: As exigências como auditorias fazem sentido para empresas muito pequenas que querem se tornar ou que já são B?
Tomás: As auditorias físicas não têm acontecido mais. Acontecem agora ligações. As empresas B tem que se certificar a cada 3 anos. Fazer auditoria é algo muito complexo, muito trabalhoso e que custa muito. Para que o custo da certificação não fique muito caro e reforce ainda mais essa questão de elitismo e privilégio, se desenvolveu um sistema de auditoria que é por telefone e através da entrega de documentos e entrevistas. A empresa que está buscando a certificação tem que entregar uma documentação que é extremamente extensa, o que faz muitas empresas desistirem do processo porque é muito pesado. Toda empresa B tem no seu site a sua pontuação, e ainda tem um link onde pode denunciar a empresa caso ela não esteja fazendo o que ela fala. É como se fosse uma certificação baseada mais na confiança do que na desconfiança. O que você está falando é uma autodeclaração, você está entregando documentação e nós vamos acreditar. Se alguém disser que você não está fazendo, a gente vai receber e vamos confiar naquela pessoa tanto quanto confiou em você.
BLOG: O movimento se tornará cada vez mais forte na medida em que o consumidor final comece a exigir produtos de uma cadeia mais sustentável. Qual o horizonte para que isso se torne uma realidade?
Essa é uma realidade que a gente já vê em países desenvolvidos, como países do norte da Europa. Na Alemanha, Berlim é uma cidade exemplo aonde a gente vê muitos restaurantes, bares e cafés que tem produtos sustentáveis, que mostram de onde vem a matéria prima, tudo feito através de produção biodinâmica, com alto padrão de cuidado com o meio ambiente. Vamos ver o consumo consciente crescer cada vez mais. Um consumo que tem a ver com a lógica de que nosso dinheiro é um voto. Um voto que determina quais as empresas que vão permanecer no mercado. Aquelas empresas que se preocuparem cada vez mais em como fazem seu serviço, seu produto, cuidando do meio ambiente e da sociedade, são empresas que vão ter seu valor cada vez mais reconhecido. Isso vai dar resiliência a elas.
Essa é uma realidade que vai se acelerando na medida que vamos entrando mais a fundo e amadurecendo na era da informação em rede. A transparência é fundamental em todos os processos. A gente viu como a falta de transparência acarretou em grandes problemas nas grandes empresas do Brasil, inclusive nas empresas de construção civil como OAS, Odebrecht... A transparência de como se dá o processo de fabricação, de produção e execução de um serviço e o cuidado desse processo com o meio ambiente é fundamental. Inclusive o blockchain é uma das maneiras como a gente vai conseguir rastrear a cadeia de valor dos produtos. O blockchain vai ajudar os consumidores a saberem a origem dos produtos desde a ponta de onde saiu a matéria prima até o final da cadeia. A indústria da moda já está fazendo alguns experimentos para garantir que aquele algodão foi extraído de maneira sustentável e que a cadeia de produção daquele produto de moda não usou mão de obra escrava. Também temos visto cada vez mais avanços na produção de alimentos orgânicos, é uma cadeia que necessita de novas tecnologias, de investimentos, de inovação para baratear a produção, e precisa também de escala, porque os orgânicos ainda são produtos que tem valor maior, porque ainda não existe um ecossistema e uma cadeira de valor preparada e madura para produzir em escala. Mas isso é uma questão de tempo.
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